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sábado, 12 de março de 2011

Deturpar - pela palavra

E por falar dessa coisa deturpada entre nós dois, silêncio. Por esse envelhecer sangrento entre as tantas incógnitas sem solução por vida, retiro o meu corpo da vala de antiguidades mortas. Enquanto o silenciar mórbido permanecer, estaremos (tu e eu) cantando a mesma música doentia. Estaremos olhando a mesma paisagem. Os mesmos corpos. Talvez não saiba, talvez nem eu saiba, algum motivo para não autodestruir essa coisa toda de companheirismo. Sabe que não o fomos. Em momento algum. Companheiros. Sempre nessa coisa frenética e alucinante de viver um dia após o outro. Agora velhos, agora cansados, agora desfragmentados de tanto passado venenoso. Nós dois. Como duas cobras enroscadas entre as raízes de árvores, com tanto veneno trocado, com tanto veneno espirrado, com tantas presas mortas. Agora no definhar lento dos vinte. No definhar antes do tempo por tanto que vivemos. Por tanto que gritamos e por tanto que fugimos. Agora com os rostos colados no descaso de quem vive, com os corpos decompostos embaixo da terra que jogamos sobre nós. Por buscarmos tantas respostas encontramo-nos agora (tu e eu, só) sem nada que explique os tantos xizes. As tantas vezes em que deixamos pra lá os filhos, os irmãos, os netos, os corações, pra correr pelo mundo (nosso) em busca de respostas para o mundo (nosso) que criamos (tu e eu). Sem saber, nós, que a resposta era, pois, nós. Sem saber que ao buscar por entre os silêncios pérfidos estaríamos encontrando o silêncio exorbitante das nossas próprias almas. Que julgávamos tanto, que amávamos tanto, que se uniam tanto. Sem saber mesmo até os nossos nomes após tantos fios soltos por entre nossas conexões (magnéticas ou não). Depois das tentativas asmáticas de mudar o imutável, de quebrar o que não se destrói, caímos aqui agora, tu e eu, por entre os esmaltes vermelhos do tempo reminiscente. Veja (como, com seus olhos cegos?), mas veja, tudo o que viramos é só uma poeira da jovialidade que tínhamos aos quinze. Fortes gladiadores de todas as tempestades que dizíamos enfrentar, fortes samurais de todas as dificuldades que víamos surgir. Fracassados agora por vermos (cegos) que nada por enfrentar nos foi dado. Agora, porcos imundos comidos por tantos vermes, ouvimos o gritar de nossa própria pele sangrenta, um socorro tão mudo que o mundo escuta de longe. Pois agora, aos vinte, vivemos setenta. E não podemos sair do lugar (defeituosos), não podemos enxergar (cegos), não podemos mais respirar (asmáticos), não podemos mais lembrar (mortos). Tu, e eu.

sexta-feira, 4 de março de 2011

[...] Que o tempo seja menos tempo que tempo é, para apenas perder menos tempo pensando em você.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Pré vinte e cinco do doze

24/12

No auge dessa estação destruidora, acordei cansada de sentir o calor insuportável da noite abafada. Olhei o teto descascado e sequei o suor da testa. O corpo todo fedendo. Levantei cambaleando procurando o banheiro no escuro. Rodei o registro até o final na expectativa do jato gelado livrar minha alma do peso do calor infernal. Nada caiu. Maldito dia que resolvi comprar presentinho de Natal. Eles lá se lambuzando em chocolate importado e eu sem água pra tomar banho. É a vida. Olhei as horas. Dez e vinte e três. Abri o vinho. Tomei da garrafa. Vinho de garrafa de plástico, vinho ruim, vinho de pobre. E eles de chocolate importado. Liguei a Tv. Natal no 15, Natal no 34, Natal no 42. Natal em todos os canais. Fechei os olhos. Tanta coisa pra trás, tanta coisa pra depois. Tocou o telefone.

"Oi, mãe. Claro que estou bem alimentada nesse Natal. Perfume, sim. Claro. Cobertor pra quê, mãe? Tá um calor dos infernos e você me manda cobertor? Manda o Caco voltar com essa merda. Manda o Caco pro inferno então. Mãe, não deseja Feliz Natal porque não existe Natal Feliz. Não, mãe, não estou bêbada. Aqui tem vinho, aqui tem vodka, aqui tem martini, aqui tem cachaça pura também. De comer tem azeitona, mãe, um pote cheio de azeitona pra semana toda. Se eu quisesse comida, eu comprava. Os chocolates... Não quero de volta não, mãe, eu comprei os chocolates pra você e pra todo mundo aí. Claro que ainda tenho dinheiro, mãe, nesse Natal eu tenho dinheiro pra dar e vender. Que homem, mãe? Não vou ficar igual a Tia Miranda. Olha, você está estragando meu Natal. Vou casar ainda, mãe. Prometo que vou. O dia que achar um homem nesse mundo eu juro que eu caso. Não, mãe, nem o Fernando, nem o João, nem o Cris, nenhum deles eram homens. Eu estava lá dando o rabo pra viado. Falo assim, sim. A senhora está enchendo o meu saco. Bom Natal pra você e os arrombados aí. Boa noite."

Acendi um cigarro. O último amassado no fundo da mala. E eles no chocolate. Olhei pela janela o brilho falso de todas as lâmpadas. Pisca-pisca-pisca-pisca. Quase lá, cidade em chamas. Quase lá. No próximo ano, quem sabe? Quase em lugar algum.

"Alô, Caco. Que diabos. Não mandei mamãe pra puta que a pariu. Claro que não. Não. Não. Não. Isso sim, seu bastardo, te mandei pro inferno sim. Manda a mamãe parar de falar atrás de você que eu to ouvindo. Você é surdo, Caco? Não mandei ninguém pra lugar nenhum. Só você pro inferno, nada pessoal, é que já passou da tua hora de voltar pra casa. Manda ela parar de chorar, porra. Eu aqui de longe tenho que resolver o problema de vocês aí? Não quero nada esse Natal. Não quero nada. Manda mamãe tomar jeito de velha e arrumar linha agulha e tricotar. Já cansei dessa história de todo ano eu ter que levar todo mundo nas costas. Ah, eu sou a vagabunda agora. Que saber? Que vocês caguem pelos olhos esses malditos chocolates importados!"

Vodka com vinho. Bebi. Bebi. Bebi. Os olhos caíram tontos e a boca ria de palavras profanas sobre toda a família, a cidade, os amigos. Falando sozinha. Pra variar. Querido Papai Noel, leve para o Pólo Norte todos os duendes que eu tenho em minha casa. Serão muito úteis em toda a sua construção de brinquedos e serão mais úteis ainda na expansão do teu capitalismo barato. Agora vá pro inferno junto com o Caco.

"Jader. Não quero jantar com você. Por que não me deixa em paz ao menos na noite de Natal? Estou sozinha no inferno, Jader. Esquentando a cadeira pra você. Ah, é mesmo? Olha, não quero presente nenhum. Quem é que tá ai com você? Bom saber que o Maurício agora tem voz de mulher e te chama de benzinho. Pro inferno, Jader. Pro inferno eu, Maurício, minha mãe, Caco, você e os malditos chocolates. Ah, tchau. Você é um idiota."

Deitei na cama molhada de suor. Encarei a TV sem ver o que passava. Pensei em todas as vezes que o Natal significou alguma coisa além de uma nostalgia fora do comum. Pensei em todos os amigos que o tempo levou e em todos os amigos que deixei o tempo levar. Se foram, se fodam. Pensei na saudade. Abri a cachaça. Pura, na boca. Pura queimando garganta. Fechei os olhos.

[...]

sábado, 15 de janeiro de 2011

Grito

Olhava o rio passar e ali estava a vida. Não eram assim as porcarias metafóricas dos grandes poetas? Vida é tudo aquilo que passa, que corre, que apressa, que carrega, que molha... Vida é tudo aquilo que o rio leva, que o rio trás. Respondam-me, malditos, por que diabos a minha não passa logo?

domingo, 9 de janeiro de 2011

Pra alimentar a dor. Por isso que choro o tempo todo com as coisas que eu crio. Para que a dor não se alimente de mim. Da minha carne. Do meu amor. Por isso eu me tranco e eu bebo, eu bebo, eu bebo... Por isso eu fecho meus olhos e fico lá na escuridão contemplando o nada, pensando em um nada de verdade que nunca virá. Pra alimentar a saudade, pra alimentar o sofrimento, a pena. Pra alimentar as partes de mim que se tornaram parasitas, pra alimentar o coração que bombeia veneno e me mata, mata, mata... Estou sempre presa ao interior, sempre ultimamente. Presa aos pensamentos e ao pensar no não-pensar. Presa em um chorar que virou miado, virou ruído e acho que nem choro mais.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

João

Passadas firmes eram ouvidas de longe. Vinha João, com toda a sua pomposa pobreza. Caminhava como um rico, um rei, um deus. Em algum lugar de seu bolso, faltava-lhe um tostão. Em sua face faltava a beleza, em suas roupas toda a formosura de seu andar. João dormira abaixo da ponte essa noite. Todos viram. Até mesmo o Manoel, aquele vesgo que nada vê. Nos bares, o assunto era o tal João.
- Joaquim, você viu o Senhor João abaixo da ponte principal essa noite?
- Sim, sim! Todos viram. Que será que aconteceu com João?
- Deus que me livre, não quero nem saber.
João nada ouvia. Nada via. Não estava nem aí. Queria mesmo era morrer embaixo da ponte. Enquanto dormia, torcia para que o rio subisse e o matasse afogado. Quando percebeu que vivo ainda estava, fechou a cara e xingou tudo o que podia. Ah, se Dona Ana não tivesse tido a maldita idéia de tentar o filho homem. Ah, se Dona Ana tivesse desistido na décima irmã de João. Mas não. Tinham de tentar o garoto. O homenzinho que salvaria a família de todo aquele martírio. João nunca quis nascer. Na hora do parto, estava atravessado no ventre da mãe e esta morreu para que ele saísse. Depois disso, sufocou-se com o cordão umbilical e quase perdeu os pulmões. Mesmo assim sobrevivera. Certa vez, quando tinha uns dois anos e os catarros não paravam de escorrer do nariz, caiu com a cabeça no asfalto. Uma outra vez, seu carro foi esmagado por um trem. Infelizmente, o lago castigado foi apenas o do carona. Onde sua radiante namorada esteve sentada antes de virar uma sopa de órgãos estraçalhados.
Ninguém entendia o porquê do homem ser tão ranzinza. E nem deveria. Todas aquelas pessoas, com todo aquele amor pela vida, jamais experimentariam o sabor agridoce das quase-mortes de João. Todos tentando agradar os vizinhos, fingindo ter o que não tinham, ser o que não eram. João não se importava. Dormia embaixo da ponte pois perdera todo o seu dinheiro na sua última quase-morte. Meteu-se em um cassino e jogou todos os seus poucos dólares nas máquinas. No fim, devia mais de dois mil dólares e não tinha como pagar. Capangas enormes o perseguiram, com armas empunhadas, e ele já agradecia por ser seu fim. Porém, para a sua infelicidade costumeira, nenhum tiro acertou-lhe.
Naquele dia, estava mais que cansado de tudo. Não tinha mulher, não tinha filhos. O que fora sua própria escolha. Não queria ser responsável pela dor de uma criatura ao viver. Não queria carregar o fardo de colocar mais um azarado no mundo. Vagava só por vagar. Já não esperava nem a morte mais. Sabia que quanto mais quisesse, mais atrasaria. Não acenou ao vesgo Manoel quando este lhe deu um adeus animado. Nem respondeu o "Bom dia" do Joaquim, não suportava aquele bêbado vagabundo. Andou e andou. Até que uma senhora gorda irrompeu do outro lado da rua. Sem toda a educação do mundo, deu uma bundada em João. Daquelas fortes. O magrelo voou no meio da rua, aonde um caminhão vindo em velocidade não permitida acertou-lhe a cara. Todos olhavam as tripas de João ali no chão. A gorda estava em prantos. Sua bunda enorme havia matado um pobre homem, dizia ela. Mal sabia que a vontade de João era beijar-lhe a bunda até que não aguentasse mais. Manoel esbravejava para os vizinhos que não podiam ver, devido à multidão.
- É o João! É o João! João da ponte, João do andar, João do azar. João está morto agora.
Ninguém se importou na verdade. Só queriam mesmo ver e fotografar algo chocante para mostrarem aos outros vizinhos que viajavam no feriado de carnaval. Diriam que a cidadezinha do interior fora mais interessante. Uma bunda gorda havia matado um homem! Que na altura ninguém mais saberia o nome. João Ninguém, diriam. João que estava lá no céu, abraçando e beijando a morte até que não sobrasse ar. Como amava aquela criatura! Como amava enfim ter se livrado daquelas pessoas malditas lotadas de hipocrisias e aparências falsas. Lá no céu ninguém se importava com nada. No céu ele era importante. Era o João de Deus. Era o João dos Céus. Anjo João. João do Amor. João da Dor. João da Morte.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Que?!

O que eu viria de olhos fechados vidrados no rosto desaparecido era a ausência refletida no bronze quebradiço. No escuro noturno eu tocaria seu corpo de lençóis brancos e eu viria você tão linda sumindo conforme o branco cai. Eu beijaria a boca de andorinhas dançantes levando embora seu perfume contagiante e seu cheiro de fruta fresca. Abraçaria o coração que não mais bate pra me sujar do vermelho seu tão seu que queria dilacerar-te.