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domingo, 28 de novembro de 2010

Preto e branco

Vejo as pessoas que caminham
sem nada no corpo, nada na alma
nada no coração
e me encho de uma vontade tola de dizer que te amo
que eu não sou essa pessoa vazia
que anda por ai sem fazer barulho
sem que ninguém note
por entre os carros das avenidas lotadas
furando os sinais, atravessando no vermelho
enquanto sei que você sabe que sou apenas isso
apenas essa parte solitária desse mundo apressado
apenas esse alguém vazio que quer encher-se de você
eu ando por ai, sabe, ando o tempo todo
tentando achar alguém em algum corpo perdido
que me remeta seu rosto, sua voz, seu sorriso
mas tudo que vejo, tudo que tem
são pessoas perdidas no próprio silêncio
gente correndo
ninguém mais quer saber dessa coisa, meu bem
essa coisa de amor que eu tenho aqui no meu peito
ninguém quer mais
acho que é porque dói
dói em mim também
mas eu tento fazer comum
como os carros que buzinam aqui embaixo da janela
como o barulho do trem nos trilhos
e as vozes vazias da televisão
querendo que eu compre, que eu veja, que eu venda, que eu vote
tento fazer com que a solidão seja essa coisa rotineira
quase como a morte
quase como um noticiário de fim de tarde
onde o apresentador dia após dia se revolta com a crueldade
com a maldade
mas no fundo no fundo já se acostumou
sabe, bem como eu
que fico aqui, me revoltando e remoendo a sua crueldade
a sua maldade de não estar ao meu lado
e no fundo, sei que meu corpo tem mais sede de tua ausência
que do seu toque que tanto anseio.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Fechou o livro. Um gosto forte de vômito na garganta. Ventava e os papeis em cima da escrivaninha voavam pra todos os lados. Todas as suas personagens cavalgando nas costas do vento, dobrando-se pelo ar e caindo majestosamente ao pé da cama. Olhou para o teto. A chuva estava forte. Sua testa estava embaixo da goteira, plof, plof, plof. Levantou quando todo o rosto estava molhado, sentou na escrivaninha e digitou algumas palavras na máquina de escrever. [...] ". Amassou. Bebericou o café e depois jogou a xícara no chão. Não quebrou. O café espalhou por todos os lados. Colocou outra folha. Tinta vermelha. "Estou fedendo sangue, café, cerveja, cigarro. Estou fedendo você." Tinta preta. "Fedendo choro. Lágrima. Sal e suor. Não sou criação. Sou eu, sou viva, estou dizendo que estou agora chorando e vomitando e escrevendo. Será isso possível? Estou com a cara molhada. O café gelou. Está chovendo vento frio. O gosto ruim não sai da boca. Você precisa sentir. Sentir, amor. Amor, amor, amor..." Lixo. Recolheu os papéis do chão. Leu em voz baixa. "Senta, solidão, toma um café e se aquece. Essa casa fria vai ser seu lar por muito tempo..." "Invadiu a minha casa, minha alma, minha vida. E nem perguntou se podia ficar, foi se ajeitando ao meu lado na cama, foi trazendo uma roupa, outra... E foi embora tão abruptamente, deixou aquela sede de ser um alguém ao lado. De ter alguém ao lado. Levou todas as roupas, nada pra eu cheirar. Levou os cigarros, o dinheiro, o amor. Levou meu coração e estou aqui amando com os pulmões..." [...] . Comprou dois maços de cigarro. Fumou. Sentou na escrivaninha. "Parei de fumar. Faz dois anos. Parei mesmo, completamente, não ponho mais cigarro na boca. Nem maconha. Nada. Parei até de beber. Não, com o café não parei.Parei com uma porção de coisa. Parei de escrever. Não pego na máquina há um ano e meio. Não pego no lápis. Em nada. Parei de comer. Pareço um palito. Ainda bebo água, café. Suco não. Parei com o suco também. O corante, me fazia mal. Parei de andar... Ainda assim, não posso ser sua. Porque não parei com todos os vícios. Não parei de respirar, embora venha tentado o tempo todo e esteja quase conseguindo... E não parei de amar você. Nem tentei."[...] "Venho dizer que acabou, amor. Acabou pra mim, pra você, pra nós dois. Venho dizer que sou mentira, sou falsa, sou bicho. Sorte. Eu te amei amo amava. Com carinho, da sempre sua e de quem quiser, eu."

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Peguei o violão e dedilhei a música feliz e triste e forte e chata. "A falta é irresponsável..." Outra. Outra. Estranho como tudo entristece gente triste. Até Let it be, I wanna hold your hand, All you need is love. Tudo lixo pra gente lixo como eu.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Cor de pele

Vive a sombra no telhado, vive o sol no mesmo lado e nada se move. Nada se cria, nada se morre. Vive a moça na cadeira que range. Vive o velho na lavoura do nada. Vive a criança com o brinquedo de barro. O que não se move vira foto, vira quadro, vira trova nas mãos de poetas. O brinquedo de barro pula pela sombra no telhado, passa voando, é um avião, é um jato... É um pássaro. A árvore oscila e a sombra meche sem ser notada, sai e volta para o mesmo lugar como o boneco que apanha e recupera o equilíbrio. Na cadeira o tecido vira bordado, vira o nome do filho que nome não tem, o desenho do céu que não se sabe ver, a pintura de um rio que secou. A lavoura se colhe sozinha sem deixar a mão velha acalentá-la, os grãos morrem secos de fome, morrem secos de falta, morrem secos de sombra. A brisa passa fraca e as folhas não se movem, o ventilador gira lento no teto e a poeira desce brilhando entre os raios de sol. Os vidros de janelas e portas refletem um sol que ninguém sabe de onde vem, a sombra do telhado tudo tampa. No sofá vive a alma talvez penada de um velho mais velho que o velho da mão velha da lavoura. Não se sabe se vive ou se morre mas sabe que respira, e talvez respirando não dê pra morrer. Mas aquilo, pro mundo, pra alguém, é morte. Prostrar-se numa eternidade moldada em um sofá velho é morte. A panela da cozinha chama a cadeira que borda, e logo o rangido se extingue junto com o barulho de madeira sendo queimada. O pouco de frango sobrado fumega sobre a mesa. O menino vem voando com o pássaro e terra na mão terra no rosto. Panela lhe grita alguns desaforos e logo aparece limpo como a água que se foi. O frango se consome nas bocas sujas da família cor de pele.

O menino do quintal grita. Vive o forasteiro caminhando para nossa casa. A sombra gelada do telhado mata o calor do forasteiro que assustado chama a dona da panela. Vamos cortar essa árvore, senhora, ninguém aguenta viver nessa sombraiada toda. Meia semana depois volta o forasteiro com mais cinco outros cansados e velhos e vive em suas mãos um serrote enferrujado. Dona, é hoje que nós tiramos esse monstro daí. Viveu no quintal a família toda, viveu inclusive o velho morto, e viveram os olhos não se sabe tristes ou encantados encontrando a morte da árvore imortal. Menino, panela, velho morto, velho vivo, cadeira que borda agradecendo o forasteiro que vive pra tirar sombras. Velho vivo mata dois frangos com a mão cansada. Panela cozinha e os forasteiros comem como bois. O frango consumiu-se rápido demais em tanto bafo de cerveja e pinga acumulada. E em uma despedida mortal os forasteiros se foram carregando sobre as costas o tronco enorme. Algum disse que vai tudo virar papel na cidade. Então a família cor de pele foi vivendo em um calor aconchegante de inverno. O velho morto voltou pro sofá. Velho vivo continuou lamentando as plantações que não pode colher. Panela continuou cozinhando frangos e frangos que iam consumir-se em bocas cada vez mais fedorentas. Menino jogou fora seu pássaro – avião – jato de barro e fez viver toda uma imensidão de carros, ônibus e trens. Cadeira que borda continuava bordando para seu filho que vive trancado na barriga e ninguém mais sabe a hora de sair.

Vive o verão. Vive a plantação, vive o sorriso, vive o verde. Vive o sol escaldante no céu e vive o calor infernal. Vive o suor sem controle nos rostos da família cor de pele, que foi virando cor de terra até virar cor de noite. Vive a criança que enfim saiu e foi nomeada de Umbelino que significava pequena sombra. Vive o frio natural de Umbelino, que nas noites mais quentes esfriava a pele negra da mãe. Vive a falta d’água, vive o fogo na plantação, vive a morte dos bois. Vive a morte do velho morto no sofá. Seu corpo moldado nunca conseguiu ser tirado de lá. Nem pelos forasteiros que voltaram muitos anos depois. Vive a morte de panela, seca no forno de tanto cozinhar. Vive seu cheiro de lenha queimada que habitou até os piores pesadelos dos forasteiros que passaram por ali. Vive a morte do menino com a garganta seca. Os forasteiros nunca viram uma pele tão seca quanto aquela. Os forasteiros pensaram até em fazer tapete do menino. Vive a morte da cadeira que não borda mais, seca de fome sem os alimentos de panela. Vive o frio de sua pele. Um forasteiro congelou só de tocá-la. Vive, enfim, a morte de Umbelino, o menino gelo, o menino sombra, o menino que morreu de frio na luz do calor. Vive a morte da família cor de pele – cor de lenha queimada, enquanto a sombra vira papel.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O relógio faz um tic-tac insuportável. A chuva faz tic-tac na janela. Tudo é muito tic-tac. As pessoas andam tic-tac. Amam tic-tac. Odeiam tic-tac. Vivem tic-tac.

É outro som perdido. Na alma da poeira que pra sempre cai. No brilho da luz branca que é rosa, azul, anil. É outra nota que o mundo dá sem saber a beleza. Eu vejo o mundo morrendo. Morrendo como o coração de alguém como eu, sem bater o som do amor. Sem a nota da paixão. A pressão do desejo. Canto pela solidão. Amor não dá mais, amor não vem mais. Canto pela morte, canto pelas flores mortas em frascos, canto pelo feio.

Alguma coisa que vem de dentro. A gente chora. Eu chorei, sabe, por tanto tempo que parecia um rio, mar, cachoeira. Eu vi o mundo com os olhos de um cão que se abandona e chuta e deixa na chuva. E eu vi a chuva como o cimento inacabado, como a tinta fresca que não pode ser molhada. E o mundo talvez me viu como um mendigo de alma, alguém pedindo amor em esmolas tão pequenas, esticando a mão pra pedir uma pitadinha de calor com carinho e recebendo pouquíssimas moedas estampadas com a cara de homens que ninguém nunca ouviu falar. E o amor? Talvez esteja vindo de ônibus na Grande São Paulo, sentindo o cheiro podre do Tietê e reclamando do engarrafamento. Quem mandou esperar o feriado pra chegar? Enquanto isso eu olhando o cinza do céu, pensando em quão cinza está o pulmão de um eu que não para de fumar. Coisa difícil é parar de fumar, melhor ficar acomodado e tranquilo que comendo cenouras pensando no cigarro. E começa a garoa, e eu tento me molhar mas garoa não molha. Só corta. As gotas afiadas, gelam cada pedacinho da gente. São Paulo é uma cidade muito triste. As estações solitárias com os trens solitários que levam tanta gente pra lugar algum. E a Luz, a Estação da Cultura, da música, da beleza, hoje a Luz virou estação dos ventos. Ninguém quer arte, ver arte, comer arte. Que diabos. Alguma coisa que vem de dentro. Não sei mais o que vem, nem lágrima mais. Nem um suspiro vazio de sentimento solto pela manhã antes de encarar o frio do verão inverso. Talvez o frio que corta a fraqueza tão forte da garoa venha me engolir em um calor que ninguém nunca viu. A gente tem mania de não saber quando morre e continua andando, respirando, vivendo. A gente tem mania de morrer todo santo dia e não se enterrar. E a gente sabe que morto não enterrado só causa problema. Às vezes eu me enterro em um cobertor negro que me deixaram aos pós no guarda-roupas, as vezes eu me enterro em uma taça trincada de uísque com água gaseificada. Pra economizar álcool. Se bem que água gaseificada hoje em dia está tão caro... Não se compara ao uísque. Tem coisa pior que ser humano quando se perde toda a vontade de viver? Essa coisa de ser gente e não conseguir morrer de fato, essa covardia toda e essa vontade de se jogar no mar quente de Santos e nunca mais sair. Mergulhar por meio das ondas que não afogam nem bebê e se fingir de morto até morrer de verdade. Eu digo que viver é ruim. E dizem que morrer é pior. Alguma saída visível entre vida e morte onde eu possa me afogar sem sentir dor? Droga não conta. Nunca fui de fumar maconha ou cheirar cocaína ou injetar alguma coisa. E se essa coisa que vem de dentro é lágrima eu sinto os ossos fracos, eu sinto o corpo desabando e se afogando na sujeira do rio que corta essa cidade cinza. Olhando da janela eu vejo tanta pobreza, tanta riqueza, uma linda passando e acenando pro amor que não vem. E meu Deus, tem alguma coisa que vinha de dentro desde o início e não era choro, nem era palavra, nem morte, nem cinza. Vem de dentro machucando, sabe. Três palavras que nada tem a ver com Eu te Amo embora façam alguma alusão distante ao amor e ao desejo e a essa coisa que chamamos de saudade. Sinto sua falta.