Vive a sombra no telhado, vive o sol no mesmo lado e nada se move. Nada se cria, nada se morre. Vive a moça na cadeira que range. Vive o velho na lavoura do nada. Vive a criança com o brinquedo de barro. O que não se move vira foto, vira quadro, vira trova nas mãos de poetas. O brinquedo de barro pula pela sombra no telhado, passa voando, é um avião, é um jato... É um pássaro. A árvore oscila e a sombra meche sem ser notada, sai e volta para o mesmo lugar como o boneco que apanha e recupera o equilíbrio. Na cadeira o tecido vira bordado, vira o nome do filho que nome não tem, o desenho do céu que não se sabe ver, a pintura de um rio que secou. A lavoura se colhe sozinha sem deixar a mão velha acalentá-la, os grãos morrem secos de fome, morrem secos de falta, morrem secos de sombra. A brisa passa fraca e as folhas não se movem, o ventilador gira lento no teto e a poeira desce brilhando entre os raios de sol. Os vidros de janelas e portas refletem um sol que ninguém sabe de onde vem, a sombra do telhado tudo tampa. No sofá vive a alma talvez penada de um velho mais velho que o velho da mão velha da lavoura. Não se sabe se vive ou se morre mas sabe que respira, e talvez respirando não dê pra morrer. Mas aquilo, pro mundo, pra alguém, é morte. Prostrar-se numa eternidade moldada em um sofá velho é morte. A panela da cozinha chama a cadeira que borda, e logo o rangido se extingue junto com o barulho de madeira sendo queimada. O pouco de frango sobrado fumega sobre a mesa. O menino vem voando com o pássaro e terra na mão terra no rosto. Panela lhe grita alguns desaforos e logo aparece limpo como a água que se foi. O frango se consome nas bocas sujas da família cor de pele.
O menino do quintal grita. Vive o forasteiro caminhando para nossa casa. A sombra gelada do telhado mata o calor do forasteiro que assustado chama a dona da panela. Vamos cortar essa árvore, senhora, ninguém aguenta viver nessa sombraiada toda. Meia semana depois volta o forasteiro com mais cinco outros cansados e velhos e vive em suas mãos um serrote enferrujado. Dona, é hoje que nós tiramos esse monstro daí. Viveu no quintal a família toda, viveu inclusive o velho morto, e viveram os olhos não se sabe tristes ou encantados encontrando a morte da árvore imortal. Menino, panela, velho morto, velho vivo, cadeira que borda agradecendo o forasteiro que vive pra tirar sombras. Velho vivo mata dois frangos com a mão cansada. Panela cozinha e os forasteiros comem como bois. O frango consumiu-se rápido demais em tanto bafo de cerveja e pinga acumulada. E em uma despedida mortal os forasteiros se foram carregando sobre as costas o tronco enorme. Algum disse que vai tudo virar papel na cidade. Então a família cor de pele foi vivendo em um calor aconchegante de inverno. O velho morto voltou pro sofá. Velho vivo continuou lamentando as plantações que não pode colher. Panela continuou cozinhando frangos e frangos que iam consumir-se em bocas cada vez mais fedorentas. Menino jogou fora seu pássaro – avião – jato de barro e fez viver toda uma imensidão de carros, ônibus e trens. Cadeira que borda continuava bordando para seu filho que vive trancado na barriga e ninguém mais sabe a hora de sair.
Vive o verão. Vive a plantação, vive o sorriso, vive o verde. Vive o sol escaldante no céu e vive o calor infernal. Vive o suor sem controle nos rostos da família cor de pele, que foi virando cor de terra até virar cor de noite. Vive a criança que enfim saiu e foi nomeada de Umbelino que significava pequena sombra. Vive o frio natural de Umbelino, que nas noites mais quentes esfriava a pele negra da mãe. Vive a falta d’água, vive o fogo na plantação, vive a morte dos bois. Vive a morte do velho morto no sofá. Seu corpo moldado nunca conseguiu ser tirado de lá. Nem pelos forasteiros que voltaram muitos anos depois. Vive a morte de panela, seca no forno de tanto cozinhar. Vive seu cheiro de lenha queimada que habitou até os piores pesadelos dos forasteiros que passaram por ali. Vive a morte do menino com a garganta seca. Os forasteiros nunca viram uma pele tão seca quanto aquela. Os forasteiros pensaram até em fazer tapete do menino. Vive a morte da cadeira que não borda mais, seca de fome sem os alimentos de panela. Vive o frio de sua pele. Um forasteiro congelou só de tocá-la. Vive, enfim, a morte de Umbelino, o menino gelo, o menino sombra, o menino que morreu de frio na luz do calor. Vive a morte da família cor de pele – cor de lenha queimada, enquanto a sombra vira papel.
Tão dentro da realidade, e tão forte como tal. Muito bom!
ResponderExcluirSimplesmente perfeito, Natália. Apaixonei-me pela sua escrita. Divina.
ResponderExcluirAbraço.