Páginas

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

João

Passadas firmes eram ouvidas de longe. Vinha João, com toda a sua pomposa pobreza. Caminhava como um rico, um rei, um deus. Em algum lugar de seu bolso, faltava-lhe um tostão. Em sua face faltava a beleza, em suas roupas toda a formosura de seu andar. João dormira abaixo da ponte essa noite. Todos viram. Até mesmo o Manoel, aquele vesgo que nada vê. Nos bares, o assunto era o tal João.
- Joaquim, você viu o Senhor João abaixo da ponte principal essa noite?
- Sim, sim! Todos viram. Que será que aconteceu com João?
- Deus que me livre, não quero nem saber.
João nada ouvia. Nada via. Não estava nem aí. Queria mesmo era morrer embaixo da ponte. Enquanto dormia, torcia para que o rio subisse e o matasse afogado. Quando percebeu que vivo ainda estava, fechou a cara e xingou tudo o que podia. Ah, se Dona Ana não tivesse tido a maldita idéia de tentar o filho homem. Ah, se Dona Ana tivesse desistido na décima irmã de João. Mas não. Tinham de tentar o garoto. O homenzinho que salvaria a família de todo aquele martírio. João nunca quis nascer. Na hora do parto, estava atravessado no ventre da mãe e esta morreu para que ele saísse. Depois disso, sufocou-se com o cordão umbilical e quase perdeu os pulmões. Mesmo assim sobrevivera. Certa vez, quando tinha uns dois anos e os catarros não paravam de escorrer do nariz, caiu com a cabeça no asfalto. Uma outra vez, seu carro foi esmagado por um trem. Infelizmente, o lago castigado foi apenas o do carona. Onde sua radiante namorada esteve sentada antes de virar uma sopa de órgãos estraçalhados.
Ninguém entendia o porquê do homem ser tão ranzinza. E nem deveria. Todas aquelas pessoas, com todo aquele amor pela vida, jamais experimentariam o sabor agridoce das quase-mortes de João. Todos tentando agradar os vizinhos, fingindo ter o que não tinham, ser o que não eram. João não se importava. Dormia embaixo da ponte pois perdera todo o seu dinheiro na sua última quase-morte. Meteu-se em um cassino e jogou todos os seus poucos dólares nas máquinas. No fim, devia mais de dois mil dólares e não tinha como pagar. Capangas enormes o perseguiram, com armas empunhadas, e ele já agradecia por ser seu fim. Porém, para a sua infelicidade costumeira, nenhum tiro acertou-lhe.
Naquele dia, estava mais que cansado de tudo. Não tinha mulher, não tinha filhos. O que fora sua própria escolha. Não queria ser responsável pela dor de uma criatura ao viver. Não queria carregar o fardo de colocar mais um azarado no mundo. Vagava só por vagar. Já não esperava nem a morte mais. Sabia que quanto mais quisesse, mais atrasaria. Não acenou ao vesgo Manoel quando este lhe deu um adeus animado. Nem respondeu o "Bom dia" do Joaquim, não suportava aquele bêbado vagabundo. Andou e andou. Até que uma senhora gorda irrompeu do outro lado da rua. Sem toda a educação do mundo, deu uma bundada em João. Daquelas fortes. O magrelo voou no meio da rua, aonde um caminhão vindo em velocidade não permitida acertou-lhe a cara. Todos olhavam as tripas de João ali no chão. A gorda estava em prantos. Sua bunda enorme havia matado um pobre homem, dizia ela. Mal sabia que a vontade de João era beijar-lhe a bunda até que não aguentasse mais. Manoel esbravejava para os vizinhos que não podiam ver, devido à multidão.
- É o João! É o João! João da ponte, João do andar, João do azar. João está morto agora.
Ninguém se importou na verdade. Só queriam mesmo ver e fotografar algo chocante para mostrarem aos outros vizinhos que viajavam no feriado de carnaval. Diriam que a cidadezinha do interior fora mais interessante. Uma bunda gorda havia matado um homem! Que na altura ninguém mais saberia o nome. João Ninguém, diriam. João que estava lá no céu, abraçando e beijando a morte até que não sobrasse ar. Como amava aquela criatura! Como amava enfim ter se livrado daquelas pessoas malditas lotadas de hipocrisias e aparências falsas. Lá no céu ninguém se importava com nada. No céu ele era importante. Era o João de Deus. Era o João dos Céus. Anjo João. João do Amor. João da Dor. João da Morte.

4 comentários:

  1. Fantástico Natália. Você tem um talento inegável. Tem selo pra ti no meu blog :)

    ResponderExcluir
  2. Ola, otimo conto!
    Uma narração rapida e simples junto a uma historia tão cheia de sentido critico.
    tive que parar para comentar e te e elogiar

    Abraços!
    Alberto Neto

    ResponderExcluir